quinta-feira, 23 de maio de 2013

O ÍCONE DA TRINDADE DE RUBLEV


Em preparação para a Solenidade da Santíssima Trindade, propomos uma reflexão sobre o famoso ícone de Andrej Rublev conhecido como Ícone da Trindade. É uma leitura iconográfica oriental sobre o episódio da "Hospitalidade de Abraão" (este é o nome oficial do ícone), quando ele acolheu três anjos, ocasião em que Sara, a estéril, ficou grávida de Isac.
O texto completo, de Alzira Fernandes, está disponível em: http://www.teresianasstj.com/index.php/pastoral/em-busca-da-fonte/173-o-icone-da-trindade-de-andre-rublev.



O ícone da Trindade de André Rublev

Alzira Fernandes

As três personagens misteriosas...

No ícone da Trindade e graças à arte da iconografia, o espectador é conduzido ao centro do mistério do ícone: as três personagens. O movimento das suas cabeças e dos olhares revela o sentido da composição, mas nascem diversas interpretações no que respeita às suas identidades. Adivinha-se ainda uma outra dificuldade: a relação de uma personagem a outra parece acontecer fora da ordem lógica do todo e fora das estruturas cronológicas. Será, por isso, necessário entrar numa contemplação e meditação orante do ícone para adivinhar uma resposta e interpretação possíveis.
As personagens apresentam uma característica marcante: os seus traços são rigorosamente idênticos, como se fosse o mesmo a ser representado três vezes. O mesmo rosto, o mesmo tipo de cabelo, o mesmo corpo alongado. É uma mesma e única figura que é três vezes representada em posições diferentes. Todos os três têm na mão um ceptro, símbolo do poder, mas também é um bastão de peregrinos do mundo. Possuem uma auréola para designar que têm igual dignidade e realeza. As suas vestes contêm o azul, símbolo da verdade divina que os habita. As asas que os circundam têm a mesma forma e dimensão. O ícone representa o Deus único, um só Deus com a mesma natureza divina em três pessoas. Mas cada personagem tem uma posição diferente; tudo é efectivamente diferente: as cores, os gestos, a direcção dos olhares.

O Filho

Pela sua posição, pela força das cores do vestuário, uma das personagens parece sair da composição em direcção ao observador. Ela está vestida como o Pantocrator das cúpulas, o Cristo glorioso vestido com uma túnica vermelha escura e um manto azul. O vermelho escuro é a cor da realeza, da riqueza e do amor. Recorda o sangue do Filho derramado no sacrifício da cruz. A faixa dourada no ombro direito, chamada clavis, sinal imperial no Império Bizantino, representa o serviço do Grande Sacerdote que é simultaneamente Celebrante e Vítima. A dilatação da manga simboliza o futuro sacrifício. O azul do manto que cobre unicamente um dos ombros é a cor da transcendência, das profundidades da vida divina e recorda que o Filho é enviado para a salvação do mundo.
No entanto, a personagem do ícone de Rublev não apresenta o rosto iconográfico típico do Cristo, porque não tem barba; ele é o Filho de Deus e o Cristo será o Filho encarnado em Jesus de Nazaré. Não se trata de Jesus de Nazaré glorificado, mas do Filho eterno de Deus, antes mesmo do mistério da encarnação no tempo
e no espaço, mas pela veste ele o é simultaneamente (Jo 1, 1.3). Esta personagem é a manifestação do Pai. A posição e a cabeça inclinada para a direita revelam que ele recebe tudo do Pai; é um sinal de submissão e do dom de si mesmo. Esta inclinação corresponde à inclinação da cabeça do Cristo dos ícones da Crucifixão (Fl 2, 6 sg.). Ele é o Verbo, a imagem do Pai.
Tudo o que Ele faz, fá-lo em união com o Pai, sobretudo a consagração do cálice, no qual se resume todo o seu ser.

O Pai

O movimento das personagens do centro e da direita e, com elas, o da montanha e da árvore, é de inclinação para a personagem da esquerda que tem uma postura mais direita que as outras duas. O Filho e o Espírito inclinam-se perante o Pai, assim como toda a Criação, numa atitude de adoração. A postura do Pai é de majestade imutável e, por isso, centro do diálogo. Ele é a Origem, o Princípio sem princípio; é o seu papel paternal. Apresenta os ombros cobertos, porque é ele que envia o Filho e o Espírito. Através da sua veste transparente e luminosa, sobressai o azul da divindade insondável, da transcendência infinita daquele que é a fonte de toda a vida divina. Tudo é calmo nele. Ele está numa posição de escuta do Verbo, para transmitir a mensagem ao anjo colocado diante dele.

O Espírito Santo

Diante do Pai encontra-se o anjo que, pela ligeira curvatura do seu corpo, simboliza a abertura total e parece acolher as outras personagens, É o Espírito vivificante. Com a cabeça ligeiramente inclinada, ele parece escutar com muita atenção o que os outros dizem. Como que para registar e meditar. A sua veste é da cor da divindade e da frescura da Primavera. O verde do manto simboliza o crescimento, a fertilidade e a esperança. Este envolve-o num só ombro, visto que ele é também um enviado do Pai, com o seu bastão de peregrino do mundo até ao fim dos tempos. A túnica azul indica que a terceira pessoa também é Deus, igual às outras duas. Do branco imaculado da mesa destaca - se o gesto da mão como se ele quisesse confirmar o pedido do Filho em se aproximando do cálice.

Os rostos, as mãos, os olhares

Os rostos são idênticos, porque as três personagens são idênticas na sua natureza. Embora cada uma assuma uma tarefa particular, as outras duas estão presentes e activas, na medida em que a acção trinitária se realiza sempre a três. Não há distância temporal, nem em hierarquia entra os três. São co-eternos.
A mão direita do Pai implica autoridade: envia o Filho único ao mundo para estabelecer a eterna Aliança com a humanidade. Mas também envia o Espírito da verdade e do amor. Uma bênção pascal parte da mão direita do Pai e passa à mão direita do Filho. O Filho bendiz, consagrando o cálice do cordeiro. A posição dos dedos sugere um segundo movimento até à mão do Espírito com o dedo fino ensina-nos isso, ela descansa no fundo branco da toalha com os quatro cantos que simbolizam os quatro Evangelhos. O Espírito. Pela sua mão, nos introduz no mistério do Cálice. O Pai, fonte eterna de toda a bênção, bendiz através do Filho, verdadeiro Cordeiro Pasça, bênção que se transmite ao mundo através do Espírito Santo. Toda a humanidade é abençoada pela Trindade Santa.
O olhar do Pai exprime uma ordem e um pedido, confirmando, assim, o sacrifício do Filho. O olhar do Filho dirige-se para o anjo que se encontra à sua direita, um olhar que não se pode desligar do outro, um olhar que corresponde ao amor do Pai e à entrega de si. O olhar do Espírito dirigido para o cálice traduz a ideia central do diálogo silencioso do Pai e do Filho. Fixa o cálice e parece envolvê-lo. Mas ele está também levantado para o alto, unindo-se à linha que une os olhares do Pai e do Filho. O Espírito é a difusão em nós dos frutos do diálogo do Pai e do Filho.

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