Em preparação para a Solenidade da Santíssima Trindade, propomos uma reflexão sobre o famoso ícone de Andrej Rublev conhecido como Ícone da Trindade. É uma leitura iconográfica oriental sobre o episódio da "Hospitalidade de Abraão" (este é o nome oficial do ícone), quando ele acolheu três anjos, ocasião em que Sara, a estéril, ficou grávida de Isac.
O texto completo, de Alzira Fernandes, está disponível em: http://www.teresianasstj.com/index.php/pastoral/em-busca-da-fonte/173-o-icone-da-trindade-de-andre-rublev.
O ícone da Trindade de André Rublev
Alzira Fernandes
As três personagens misteriosas...
No ícone da Trindade e graças à arte da
iconografia, o espectador é conduzido ao centro do mistério do ícone: as
três personagens. O movimento das suas cabeças e dos olhares revela o
sentido da composição, mas nascem diversas interpretações no que
respeita às suas identidades. Adivinha-se ainda uma outra dificuldade: a
relação de uma personagem a outra parece acontecer fora da ordem lógica
do todo e fora das estruturas cronológicas. Será, por isso, necessário
entrar numa contemplação e meditação orante do ícone para adivinhar uma
resposta e interpretação possíveis.
As personagens apresentam uma
característica marcante: os seus traços são rigorosamente idênticos,
como se fosse o mesmo a ser representado três vezes. O mesmo rosto, o
mesmo tipo de cabelo, o mesmo corpo alongado. É uma mesma e única figura
que é três vezes representada em posições diferentes. Todos os três têm
na mão um ceptro, símbolo do poder, mas também é um bastão de
peregrinos do mundo. Possuem uma auréola para designar que têm igual
dignidade e realeza. As suas vestes contêm o azul, símbolo da verdade
divina que os habita. As asas que os circundam têm a mesma forma e
dimensão. O ícone representa o Deus único, um só Deus com a mesma
natureza divina em três pessoas. Mas cada personagem tem uma posição
diferente; tudo é efectivamente diferente: as cores, os gestos, a
direcção dos olhares.
O Filho
Pela sua posição, pela força das cores
do vestuário, uma das personagens parece sair da composição em direcção
ao observador. Ela está vestida como o Pantocrator das cúpulas, o Cristo
glorioso vestido com uma túnica vermelha escura e um manto azul. O
vermelho escuro é a cor da realeza, da riqueza e do amor. Recorda o
sangue do Filho derramado no sacrifício da cruz. A faixa dourada no
ombro direito, chamada clavis, sinal imperial no Império Bizantino,
representa o serviço do Grande Sacerdote que é simultaneamente
Celebrante e Vítima. A dilatação da manga simboliza o futuro sacrifício.
O azul do manto que cobre unicamente um dos ombros é a cor da
transcendência, das profundidades da vida divina e recorda que o Filho é
enviado para a salvação do mundo.
No entanto, a personagem do ícone de
Rublev não apresenta o rosto iconográfico típico do Cristo, porque não
tem barba; ele é o Filho de Deus e o Cristo será o Filho encarnado em
Jesus de Nazaré. Não se trata de Jesus de Nazaré glorificado, mas do
Filho eterno de Deus, antes mesmo do mistério da encarnação no tempo
e no espaço, mas pela veste ele o é
simultaneamente (Jo 1, 1.3). Esta personagem é a manifestação do Pai. A
posição e a cabeça inclinada para a direita revelam que ele recebe tudo
do Pai; é um sinal de submissão e do dom de si mesmo. Esta inclinação
corresponde à inclinação da cabeça do Cristo dos ícones da Crucifixão
(Fl 2, 6 sg.). Ele é o Verbo, a imagem do Pai.
Tudo o que Ele faz, fá-lo em união com o Pai, sobretudo a consagração do cálice, no qual se resume todo o seu ser.
O Pai
O movimento das personagens do centro e
da direita e, com elas, o da montanha e da árvore, é de inclinação para a
personagem da esquerda que tem uma postura mais direita que as outras
duas. O Filho e o Espírito inclinam-se perante o Pai, assim como toda a
Criação, numa atitude de adoração. A postura do Pai é de majestade
imutável e, por isso, centro do diálogo. Ele é a Origem, o Princípio sem
princípio; é o seu papel paternal. Apresenta os ombros cobertos, porque
é ele que envia o Filho e o Espírito. Através da sua veste transparente
e luminosa, sobressai o azul da divindade insondável, da transcendência
infinita daquele que é a fonte de toda a vida divina. Tudo é calmo
nele. Ele está numa posição de escuta do Verbo, para transmitir a
mensagem ao anjo colocado diante dele.
O Espírito Santo
Diante do Pai encontra-se o anjo que,
pela ligeira curvatura do seu corpo, simboliza a abertura total e parece
acolher as outras personagens, É o Espírito vivificante. Com a cabeça
ligeiramente inclinada, ele parece escutar com muita atenção o que os
outros dizem. Como que para registar e meditar. A sua veste é da cor da
divindade e da frescura da Primavera. O verde do manto simboliza o
crescimento, a fertilidade e a esperança. Este envolve-o num só ombro,
visto que ele é também um enviado do Pai, com o seu bastão de peregrino
do mundo até ao fim dos tempos. A túnica azul indica que a terceira
pessoa também é Deus, igual às outras duas. Do branco imaculado da mesa
destaca - se o gesto da mão como se ele quisesse confirmar o pedido do
Filho em se aproximando do cálice.
Os rostos, as mãos, os olhares
Os rostos são idênticos, porque as três
personagens são idênticas na sua natureza. Embora cada uma assuma uma
tarefa particular, as outras duas estão presentes e activas, na medida
em que a acção trinitária se realiza sempre a três. Não há distância
temporal, nem em hierarquia entra os três. São co-eternos.
A mão direita do Pai implica autoridade:
envia o Filho único ao mundo para estabelecer a eterna Aliança com a
humanidade. Mas também envia o Espírito da verdade e do amor. Uma bênção
pascal parte da mão direita do Pai e passa à mão direita do Filho. O
Filho bendiz, consagrando o cálice do cordeiro. A posição dos dedos
sugere um segundo movimento até à mão do Espírito com o dedo fino
ensina-nos isso, ela descansa no fundo branco da toalha com os quatro
cantos que simbolizam os quatro Evangelhos. O Espírito. Pela sua mão,
nos introduz no mistério do Cálice. O Pai, fonte eterna de toda a
bênção, bendiz através do Filho, verdadeiro Cordeiro Pasça, bênção que
se transmite ao mundo através do Espírito Santo. Toda a humanidade é
abençoada pela Trindade Santa.
O olhar do Pai exprime uma ordem e um
pedido, confirmando, assim, o sacrifício do Filho. O olhar do Filho
dirige-se para o anjo que se encontra à sua direita, um olhar que não se
pode desligar do outro, um olhar que corresponde ao amor do Pai e à
entrega de si. O olhar do Espírito dirigido para o cálice traduz a ideia
central do diálogo silencioso do Pai e do Filho. Fixa o cálice e parece
envolvê-lo. Mas ele está também levantado para o alto, unindo-se à
linha que une os olhares do Pai e do Filho. O Espírito é a difusão em
nós dos frutos do diálogo do Pai e do Filho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário